quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O PAPAGAIO

















Papagaio é um bicho esperto. O nosso era um gênio.


Trazido bem pequenininho do norte, por um caminhoneiro, o louro foi criado com miolo de pão molhado dado no bico e era como se fosse alguém da família.
E eu já digo era, porque o infeliz já não está mais entre nós: foi covardemente assassinado por um tal de Ico, um cachaceiro. Pois é.
De primeiro, o louro ficava na janela da cozinha, zanzando num poleiro feito de cabo de vassoura. Mal o dia clareava, ele despencava a falar, interesseiro, com a sua voz esganiçada:

- Dá café pro louro! Quer café, louro? Coitaaaaado do louro!

Imitava de tudo: cachorro, gato, cabrito, galinha, galo, criança chorando. Ele
alegrava o ambiente com a sua bulha, cantando sempre a mesma marchinha de carnaval:

- Se você fosse sincera, ô-ô-ô-ô, Aurora!

Depois de um tempo, a gaiola mudou para dentro da venda, e o louro começou a circular, muito mansinho, por entre as prateleiras e até em cima do balcão, para alegria dos fregueses. Bicho inteligente, ele reconhecia algumas pessoas, e remedava, com a sua vozinha de taquara rachada:

- Bom dia, Nerso! Dá uma pinga aí...


Meu avô enjeitou muito dinheiro nele. De jeito nenhum que ele vendia o louro!


Entretanto, o destino quis que o louro embirrasse justo com a cara do Ico, o pinguço mais chato que havia na cidade. Era só o Ico entrar na venda, que a ave se arrepiava inteira, e, acendendo uns olhos esbugalhados, ia logo expulsando o bêbado:

- Té logo! Té logo!


Era um comportamento muito estranho, já que o nosso papagaio era de paz. Talvez não gostasse do Ico por motivos pessoais, vai saber...

O caso é que um dia, o pinguço se invocou e torceu o pescoço do lourinho, sem dó. Foi uma tristeza geral, e só não torcemos o pescoço do Ico nem sei bem por quê.

foto: Danilo Chequito

O GRILO DE ABRIL


Quando os tiros ecoaram na praça, a multidão se espalhou feito água esparramada, tomando os becos e as ruelas do centro.  Os cavalos dos milicos avançaram, pisoteando os lírios amarelos do jardim, e eu fechei a janela, por precaução.

Apaguei a luz e fui me abrigar lá na cozinha, temperando o feijão.  

Então liguei o rádio e a música calma descombinou com as notícias falsas,  nada a ver com a noite a que ia anoitecendo lá fora, entre freadas bruscas, gritos e o tiroteio.

Continuei a fazer o jantar.

Ali na praça a cena era a mesma, quando arranjei a salada de alface com tomate e cebola.


Resolvi tomar banho.

Lavei e sequei o cabelo, pintei as unhas dos pés com um esmalte vermelho-sangue. Os tiros ainda pipocavam, lá fora.

Vesti meu pijama vermelho e olhei para baixo pela fresta da persiana: umas poucas pessoas ainda fugiam, uns cavalos ainda esmagavam lírios amarelos no jardim da praça. 


Fiquei ali algum tempo, escutando os ecos da quizumba, até que entrou pela janela um silêncio esquisito, uma ausência total de ruídos urbanos. Nenhuma buzina, nenhuma freada, nenhuma sirene, nada!

No escuro,  só o tic-tac do despertador e o ronquinho  asmático da geladeira continuavam, o resto era silêncio. 

 Então eu escutei o grilo. Um grilo!

No escuro da noite, depois do movimento armado que fez as pessoas correrem e se esparramar como água espalhada, depois dos cavalos reluzentes esmagarem quase todos os lírios amarelos da  da praça, eu escutava um grilo!

Certamente um grilinho terrorista, que cantou e cantou o seu cantinho comunista,  desprezando o estado de sítio. Cantou até quando o sono chegou, apagando sua voz, junto com todos os outros ruídos daquela noite de abril.


foto: "Persiana" - Canto de Sirena