sábado, 17 de janeiro de 2009

UM CALENDÁRIO DOS MORTOS
















Lá fora era domingo, e o mundo resplandecia de sol e ingênua alegria.
As pessoas davam mil voltas na praça, ausentes e distraídas, feito peixes num aquário. Uns liam o jornal, outros falavam ao telefone, ninguém se olhava nos olhos.  Povo besta!

Sentada na beira da cama,  arredou uma mecha de cabelo da testa,  pensando noutro domingo, outro quarto e outra vida. Bem diferente daquela, vida com gosto de vida, vida  com cheiro de vida.

Na beira da cama, meditou sobre o quanto já tinha navegado através dos igarapés e dos igapós do amor, e nas muitas vezes que já tinha se perdido e corrigido a rota. Muitas vezes. Muitas vezes...

Na beira da cama, pensou que nunca tinha vivido um Amor, com "A" maiúsculo. Um amor grande e escandaloso, daqueles que nunca se acabam ou que, quando acabam, costumam deixar cicatrizes, patrimônio, bens imóveis, móveis e semoventes, descendência, herdeiros necessários e legatários...

Pensou, na beira da cama,  que sempre vivera somente aquele amor efêmero e indecente de escambo, que nada deixa senão a marca ensebadinha de digitais na borda da alma.

Lembrou  que tinha pertencido, pelo menos em tese, a vários homens. Dos quais, todos mortos: era, então, a ex- amante dos mortos. Mortos recentes e mortos antigos, que quando muito ficam vivos na lembrança dos vivos, assombrando as esquinas vazias da memória e entristecendo os domingos, sem querer ir embora de vez.

Da beira da cama, olhou a folhinha amarelada na parede amarelada, que dizia que já era domingo, mas ela sabia que precisava ser paciente, precisava saber esperar, pois os mortos sempre se atrasam .



foto: "Mulher Nua" - Carybé

(CASOS LIGEIROS 17/01/2009)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

SOSSEGA, LEÃO!















Homem corretíssimo, o Leão era chefe da seção, fazia anos.
Homenzarrão bem alto, empertigado e elegantão, usava, no entanto, uns apetrechos de décadas passadas, que lhe conferiam um certo ar anacrônico de cantor de tango, ou de cafetão bem educado. Aquele bigodinho fino, aquele cabelo engomado penteado para trás, o colarinho perfeito. No jeito de falar, então...

- Dona Júlia, queira por obséquio encerrar o relatório, sim ? Ou:

- Sr. Geraldino, queira por gentileza, encaminhar essa cópia ao Ilustríssimo Senhor Secretário, com a devida urgência, sim?

Era um verdadeiro lorde, não se discute. Até na rodinha do café, embora fosse inteiramente democrático, conservava-se sempre um degrau acima da turma, naturalmente. Ele jamais participava das piadas chulas que regularmente surgiam, nem das inevitáveis fofocas sexuais dos desocupados de plantão. Fazia de conta que não escutava, puxava outro assunto, às vezes fingia engasgar com o café e saía fora. Só tinha uma pedra que o Leão não conseguia contornar: a beleza feminina e, mais precisamente, a beleza do decote da Beatriz.

- Ah! o decote da Beatriz...


E o Leão era covardemente traído pela cupidez. Estacionando diante da mesa e do decote da escriturária feito um morcego, só apreciando, não ousava nem respirar, quem dirá mover-se, e muito menos falar! Muito a custo, depois da titubeada notória, dizia, macio:

- Do-dona Beatriz, lindo dia, não?

E virava no pé.
O Leão era tímido...
Dizem as más línguas que os dois finalmente ficaram amantes, já que eram ambos casados. Dizem ainda que, fora da repartição, o Leão atacava. Mas essa gente diz cada coisa...


Foto: Marcello Grassmann