sábado, 11 de julho de 2009

UM CHORO DE TRISTEZA E DÓ






Quando finalmente o último freguês foi embora, até que enfim, ela desceu a porta de aço e correu. Correu de verdade, suando nas axilas e fincando o saltinho nas pedras da calçada, com pressa de voltar para o apartamento, embora soubesse que estaria vazio. Será?

Vazio... Ainda estava vazio.

Trancou bem a porta, fechou a cortina vermelha e desabou sobre a vasta e vazia e inútil e idiota cama de casal. 

E chorou, e chorou, e chorou...

Chorou tudo aquilo que não tinha chorado até então: por ter sido abandonada pelo seu amor eterno, ai! ele era tudo, tudo, tudo...por estar tão sozinha, por sentir tanto medo de ficar sozinha até o fim da sua vida, porque não tinha mesmo sorte na vida, por não ver perspectivas para levar adiante a vida, prá que viver? merda de vida, merda de vida, merda de vida, vontade de morrer viu, por detestar sua vida, por detestar seus amigos, por detestar sua faculdade, por detestar seu trabalho, por detestar tudo, soluçou.

Ela chorou por si mesma, um choro de tristeza e dó.

Muitas vidas e muitas mortes depois, olhos inchados, nariz vermelho pingando, sentindo-se esvaziada, tão leve e tão ridícula, ficou ali deitada na camona de casal enorme e fria, encolhidinha, escutando o ronronar dos carros na rodovia lá embaixo e olhando as sombras do balé das luzes da cidade filtrando-se pela vidraça e pela cortina vermelha. São Paulo nunca pára. São Paulo nunca dorme. São Paulo nunca sonha. Só pensamentos inúteis, só merda: o cérebro parecia ter ido embora junto com as lágrimas, só restara um oco. Um ex-cérebro. Acefalia? Anencefalia? Sei lá. Vazio, vazio, vazio...

Muitas sombras e muitas luzes e muitas idéias inúteis depois, ela acabou adormecendo, com os olhos vermelhos inchados e o nariz vermelho e inchado e pingando no travesseiro com o cheiro dele...ai, o cheirinho delicioso dele. 

Ela sonhou, parece.

No sonho, ela era outra vez uma menininha, talvez de uniforme e boina azul-marinho, segurando outra vez uma mão grande e macia e rosada, com um lindo relógio prateado. E no sonho ela ainda usava sapatos de boneca, de verniz preto, lindos, maravilhosos. Esplêndidos. 

No sonho ela ia descendo a rua e seguindo os trilhos do bonde de um bairro de casas iguaizinhas e jardins simpáticos, onde os passarinhos cantavam alegres e onde até os cachorros e os gatos, aquecendo-se ao sol da manhã, eram seus velhos amigos. Felicidade esplêndida. 

Esplêndida. O berço esplêndido. 

Nos ombros, levava a mochila da escola,  com a cartilha, o caderno, o estojo, a régua e a tabuada. Duas vezes dois: quatro. Duas vezes três: seis. Eu vejo a barriga do bebê. Ba, be, bi, bo, bu. O cachorro bebe na cuia. 

Cheiro de maçã...

O zumbido impertinente foi crescendo, crescendo, até que cortou o fio da meada, trazendo-a de volta ao mundo do lado de cá da felicidade, e espantando os últimos pássaros do sonho. Alguém tocava a campainha, merda quem será? merda ... olhando-se de passagem no espelho do banheiro, ajeitando o cabelo ridículo e dizendo já vou, já vou, já vou, ela viu que estava horrorosa, quem seria? E se...

FOTO: Nicoletta Ceccoli