quarta-feira, 31 de março de 2010

CHUVAS ESPARSAS




















O relógio marcava dez horas. Segunda-feira, dez horas da manhã. Céu nublado, 'sujeito a chuvas esparsas', bem como dissera a mulher da TV. Chuvas esparsas: uma chuva aqui, outra chuva ali... e, no meio, aquele deserto. Pois se a sua própria vida fora sempre tão sujeita a chuvas esparsas!
O portão negro de ferro fechou às suas costas com o baque costumeiro, mas do avesso. Fechava-o agora para fora, impedindo-o de voltar à sensação de segurança do conhecido espaço interno, circunscrito pelos altos muros: estava livre, e agora era preciso andar. Livre, liv-re...
Em pé na calçada molhada, pensou no que fazer daquela liberdade que, de tão esperada, já não permitia improvisação. Pegaria o ônibus no ponto do outro lado da avenida (agora a passagem era R$ 2,70) e sentaria do lado da janela, se desse. No caminho, iria observando cada pequeno detalhe das ruas com uma importância nova, iria descobrindo o mundo outra vez. Olharia com curiosidade qualquer pequena mudança, qualquer prédio novo, um cartaz diferente numa loja, uma placa anunciando obras na pista. Certamente veria, pela primeira vez na vida, os lírios amarelos no canteiro central.
O mundo estaria lá, como se tudo houvesse sido congelado, ou como se fosse um filme passando diante de si, como se ele mesmo fosse um personagem de filme, e não uma pessoa real. Livre, livre, li-vre.
Ao seu lado sentou-se um cego, e viajaram os dois em silêncio.
Ele continuou a fazer o inventário da paisagem que desfilava na vidraça conforme o ônibus avançava, cortando a cidade: as pessoas, os prédios, os viadutos, mais pessoas, o trânsito pesado arrastando-se pelas vias marginais, ' nesta segunda-feira a cidade estará sujeita a chuvas esparsas no decorrer do período'...
Chegaria em casa em tempo de almoçar, pensou, chegaria antes do meio-dia, provavelmente. Mas era segunda-feira, e provavelmente ninguém estaria em casa, provavelmente, no trabalho. Provavelmente. Chuvas esparsas. Era o seu primeiro dia em liberdade, e comeria algum resto requentado da janta. Mas aquilo também era vaidade. Tudo era vaidade, não era?
Pensou no que estaria pensando o cego, a seu lado: ele ia tão sério, o ceguinho, com aqueles dois olhos cegos não-olhando o vazio na sua frente. Talvez o ceguinho também tivesse sido posto em liberdade, talvez o cego também estivesse indo para casa, talvez o cego também analisasse aquele mundo recém-descoberto, a seu modo, e talvez ele também o achasse muito mudado, comparando com o de antes. Talvez...
Recomeçou a chover, embaçando as vidraças do ônibus. Uma chuvinha besta, uma chuvinha rala e quase morna, um pingo cá, outro pingo lá: chuva esparsa. Sentiu necessidade de chorar.

foto: Chuva