sexta-feira, 16 de abril de 2010

BOM DIA?


Doralice tinha descido do ônibus uns dois ou três pontos antes, porque o trânsito empacou na Avenida São João, e agora ia andando apressadíssima pela calçada molhada, que lhe ensopava o couro barato do sapato. Ploc, ploc, ploc... Pensava sem querer naquelas cenas tão tocantes que acabara de ver na televisão, enquanto ia engolindo seu pão com margarina e tomando café com leite. Aquela gente triste sendo retirada do meio dos escombros do terremoto longínquo: gente morta, gente gravemente ferida, criancinhas chorando à procura dos pais, cachorros perdidos à procura do dono, tantos móveis e utensílios ali expostos ao tempo, certamente que muitos ainda não totalmente pagos, aparelhos caros. Todo mundo hoje em dia tem aparelhos caros, coisas que antigamente ninguém tinha, ninguém nem sonhava. Uma judiação, o terremoto. Ainda bem que aqui não tem.
Doralice seguia apressadíssima no seu percurso diário, tentando guardar-se da chuva que despencava, ploc, ploc, ploc. Já estava atrasada quinze minutos. Droga. Aquele emprego... quase xingou. Se bem que não podia xingar o emprego. OK, era um empreguinho mixuruca, verdade, pagava mal, verdade também, e o chefe era um bosta, um tarado, uma anta. Um bosta! xingou baixinho. Se achava o bonzão , mas não sabia nem escrever, não conjugava os verbos direito, engolia todos os plurais, trocava os pronomes, para mim vender, para mim comprar. Uma anta. O sapato ensopado ajudava a odiá-lo: mas precisava tanto daquele dinheirinho mixo! O terremoto...
No elevador, encontrou a Dona Cinira, a dona boazuda do sexto andar. Bom dia! Bom dia? Melhor deixar barato, melhor concordar que o dia estava bom, apesar. Bom dia, Dona Cinira. Era secretária do diretor no sexto, a vaca. Bomdiaeforamseespremendoconformeoelevadorenchiadegentequesacoquesacoquesaco... Décimo!

No décimo, Doralice se esgueira para fora e ajeita a saia amarrotada e a blusinha molhada. O sapato, uma poça. Droga. Sobre sua mesinha, a correspondência amontoada espera o fim da greve dos correios. Envelopes pardos, grandes, médios, pequenos, centenas de envelopes. Milhares? Caixas contendo outras caixas menores. Abarrotada. Bom dia?
O chefe, sentadão lá na mesa grande no fundo da sala, olha para ela como sempre olhou, com aqueles olhinhos cúpidos de peixe morto, olhinhos indecentes. Bom dia, dona Doralice! Aliás boa tarde, pegou muita chuva?
Ela voltou a pensar no terremoto.
Aqui não tem...

foto: Broken Windows Theory