Dedicado à Fernanda Ozilak, ilustradora e filha, a quem assombrei na infância com os meus causos ligeiros...
Éramos bem pequenas, as três.
O meu avô, um velho muito alto e que usava chapéu, tinha o gostoso costume de esquentar fogo na taipa do fogão toda noite, antes de dormir. Naquele tempo fazia muito mais frio. Nós, suas netas queridas, penduradas ao seu redor, pedíamos queijo quente na chapa, ou pipoca, ou bolinho de chuva e que ele contasse um causo de assombração.
Puro masoquismo, uma vez que, depois de escutar os tais causos, tínhamos medo até de andar até o quarto. Íamos agarradinhas uma na outra, e dormíamos com a cabeça coberta. Naquele tempo ainda não havia televisão, então essa era a nossa diversão noturna. Martírio e delícia...
Um dos causos de que eu lembro era o da loira fantasma e o vaqueiro valentão.
Era assim: havia um vaqueiro que era metido a valentão e que gostava de ficar contando vantagem na venda da beira da estrada, entre todos os seus colegas vaqueiros que sempre paravam ali para tomar uma pinguinha antes de seguir viagem. Numa dessas ocasiões, alguém contou que alguém tinha lhe contado sobre uma certa mulher loira, muito bonita, que tinha morrido sem cumprir uma promessa de ir a Aparecida do Norte, e que desde então a falecida aparecia para os viajantes no meio do caminho escuro, chorando e pedindo carona.
O vaqueiro valentão não deixou barato e arrotou que se a tal da loira surgisse, não hesitaria em dar a ela um lugarzinho na garupa do cavalo.
Dito isso, montou e partiu, seguindo o caminho longo e solitário rumo do sertão. Era noite de lua cheia, e a lua alumiava as cercas e as grandes palmeiras à beira da estrada, formando sombras magras e compridas no chão de terra.
Avistou a porteira grande duma fazenda e de longe divisou o vulto de uma pessoa sentada. Era uma mulher loira, vestida de branco. De longe parecia bonita. Conforme ele foi chegando mais perto, percebeu que ela chorava soluçado.
- Que que é isso, dona, por que essa tristeza toda? Ela respondeu que ia indo para o norte, mas que já estava cansada. Que era tão longe, que nunca chegava... O valentão, esquecido do assunto da venda, ofereceu a garupa. A dona não carecia chorar daquele tanto.
Cavalgaram calados debaixo do luar por bastante tempo, até que ele percebeu que a mulher não esquentava, e o corpo dela grudado, às suas costas, continuava frio que nem uma pedra. Nesse ponto ele olhou para trás e...
O vovô então fazia uma pausa teatral para acender o pito de palha num tição de lenha, enquanto nos achegávamos mais ainda umas às outras.
- Conta, vô!
Nesse ponto - ele prosseguia com voz soturna - o vaqueiro olhou para trás e nem queiram saber o que é que ele viu!
- O foi que ele viu, vô?
Era o bicho mais feio do mundo, uma assombração, um corpo-seco, uma alma-penada. A loira riu uma risada muito alta e muito feia, tarracada na cacunda do vaqueiro, e só então o valentão lembrou que levava um patuazinho preso ao trancelim no pescoço, com a imagem da Virgem.
- Valei-me, minha Nossa Senhora!
Nessa hora, concluia o vovô, o bichão feio pulou fora da garupa do cavalo, e soverteu numa nuvem de fumaça.
Só ficou aquele cheiro de enxofre no ar...
Nossa procissãozinha apavorada seguia então para o quarto e dormia agarradinha uma na outra, na grande cama de casal. De cabeça coberta, é claro.
foto: A Sombra - Feozzy