sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O VELHO E O GATO



















Sentado no alpendre coalhado de samambaias e gerânios, o velho aproveita o sol da manhã.  No colo, segura um  gato velho, já meio russo.

Porque todo velho solitário tem um gato.   

Acorda cedo e permanece um tempão sentado na beira da cama larga, pensando se vale a pena levantar. No fim, levanta por necessidade, e vai abrir a janela, para que o sol entre no quarto.

Acaricia o gato que lhe roça as pernas querendo comida.

Ajeita os óculos e vai lendo o jornal de trás para diante, como sempre fez, bebendo o café preto na xícara azul. Costume antigo, que vai  virando o jeito de ser das coisas.  Coisa de velho.

 Molha as samambaias e os gerânios.

Meio dia, desce a escada devagar e caminha até o Bar Tropical, na pracinha da igreja.  Almoça o prato do dia e aproveita para conversar com algum outro solitário. Fica por ali, fumando,  jogando dominó e fazendo hora, até que o relógio da igreja anuncia o fim da tarde. 

Então sobe a rua naquele  passinho duvidoso de quem há muito perdeu a vontade de voltar para casa.

Do alto da escada olha em silêncio a cidade,  contempla o ocaso. Os derradeiros raios do sol batendo na torre da igreja, o bando de aves arreliando no bambuzal  perto do rio.  Então ele pensa que tudo isso perdeu um pouco da graça que tinha antes,  agora que está velho.

Velho e solitário...

Senta-se na velha poltrona, com o gato no colo, na frente da TV.  Juntos, ficam ali um bom tempo, aquecendo a solidão e pensando na vida. 


foto: Aldo Malagoli

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

MEU VESTIDO DE ORGANDI


Uma vez nós vajamos para o interior de Minas,  visitar uma tia que morava na roça. Nem era tão longe assim, a questão é que o transporte, naquele tempo, era bem mais precário. 


Primeiro pegamos uma jardineira, aquele ônibus antigão com o motor na frente e bagageiro em cima do teto, onde viajavam juntos bagagens,  galinhas, porcos e tudo o mais.  A estrada era de terra, por sorte não chovia. A partir de certo ponto, entretanto, tivemos que ir na carroceria de um carro de boi, lentamente, lentamente, ouvindo aquele gemido pungente das rodas, ueeeeeeeeeeeeeem....

Até que, depois de uma curva na estrada, o carro de boi entrou numa fazenda, e nós seguimos a pé. Anda que anda, anda que anda, por fim chegaram os primos a cavalo, para nos encontrar. 

Alívio? 

Acontece que eu tinha viajado com o meu vestidinho mais chique, de organdi cor-de-rosa. Era um tecido muito fininho, quase transparente, em várias camadas formando sobressaias. Um luxo.

Só que, viajando na garupa do vovô, foi impossível segurar aquela montoeira de babados para evitar que encostasse na bunda suada da montaria. Resultado: o suor do cavalo repicou o vestido, acredita? Fez um rombo em toda a extensão do contato. Mas isso eu só fui ver depois, muito depois. Acho mesmo que o vestido ficou na minha sacolinha até o fim da nossa estadia,  vai ver até que foi isso que fez o suor adquirir esse poder todo.
 
Até porque a gente tinha muito mais coisas pra fazer: acordar cedinho e já correr pro ribeirão, nadar entre os meninos e os peixes, tomar leite tirado na hora, comer fruta madura no pé...

Foi naquela vez que eu me dei conta da dureza da vida na roça. Todos trabalhavam por ali, desde a minha tia, senhora já dos seus 50 anos, até os filhos pequenos. E a enxada, amigos, só é bonita na mão do outro!
Eu, bicho urbano, criado nas molezas da cidade grande, do ônibus pra todo canto,  do sapato bom no pé, do agasalho e da capa de chuva contra as agruras do clima, pude ver o quanto a minha vida era diferente dos meus primos, tendo no entanto a mesma idade.

Cedinho, ainda escuro, eles já estavam na cozinha bebendo o cafezinho ralo mineiro e comendo a broa de fubá generosa que minha tia assava no forno de barro. Saiam para o eito pitando seu pito de palha já que a plantação ficava a não sei quantas léguas da casa. 

Chapelão de palha, enxada ao ombro, alguns calçados de jeca-tatu, outros de alpercata,  outros nem isso... E dá-lhe enxada, e dá-lhe capinar o café, e dá-lhe peneirar  café,  uma labuta que só iria terminar com o sol posto.

Eles voltavam cheirando a suor, quietos, mas logo se alegravam. 

Depois da janta, ficavam todos reunidos no alpendre,  tocando viola e cantando as velhas modas de sempre, que falavam valentia  de cavalos baios, de meninos na porteira e de chalanas sumindo na curva dos rios, de amores desfeitos e de colchas de retalho bem guardadas na memória. 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

O RABUDINHO





Não comer manga com leite, porque é veneno.  Nunca deixar o calçado jogado no chão com a sola para cima, porque os pais morrem. Quando o relógio marcar dezoito horas, nunca, jamais iniciar ou manter uma discussão. Uma briga, um bate-boca. Jamais!

Coisas da mãe.

Ela contava que, no tempo antigo, existiu um casal, marido e mulher, que brigava muito. Ele gritava com a mulher, ela jogava coisas nele, era um inferno. Moravam numa casa pequena, de quarto e cozinha, e ele sempre ficava no quarto estirado na cama e xingando, e ela da cozinha, mexendo as panelas e retrucando. De vez em quando voava uma caneca,  uma colher de pau e sempre muitos palavrões dos dois lados. Um inferno.

Mas um certo dia, justamente às dezoito horas, começou o tendepá.  Ele chegou em casa meio bêbado, como de costume,  e já veio xingando do portão.

Que aquela mulher não valia nada,  onde é que ele estava com a cabeça quando casou com aquela vagabunda,  olha só a sujeira da casa e ela o dia inteiro grudada no rádio escutando novela...

E deitou na cama de casal, bufando espichadão.

Ela, como sempre, não deixou por menos, e retrucou que vagabundo era ele e mais a corja toda da família dele, que se soubesse que ia passar a vida inteira enfiada naquele buraco de rato que era aquela casa não teria casado com um inútil feito ele, e coisa e tal...

Foi quando os dois olharam para o portal entre o quarto e a cozinha e viram a criatura. O rabudinho!

O rabudinho estava ali, gargalhando com aquela risada mais medonha, olhando ora para o quarto e ora para a cozinha e torcendo o rabo de gozo, com dois olhos enormes e esbugalhados, acesos de fogo. 

O casal apavorado não sabia o que fazer, então os dois resolveram ajoelhar e rezar.  Só assim  o rabudinho foi embora.

E eu aprendi a ver as horas.


foto ilustração de Feozzy

sexta-feira, 22 de julho de 2016

CONTOS DA TIA


Era uma vez...

Pronto,  estava instaurado o reino do faz-de-conta, onde tudo era possível. A tia sentava-se à cabeceira da imensa cama de casal, acomodando-se entre cobertores e pilhas coloridas de travesseiros.  A gente se  amontoava em volta dela,  olhos arregalados para não perder nada. 

Era uma vez...

Era uma vez, num reino bem distante, bem prá lá do fim do mundo, onde o vento faz a curva, longe, longe, bem longe. Onde nunca, ninguém, jamais foi nem iria, de tão longe.

Tinha um bom rei pai e uma bondosa rainha mãe. Tinha uma filhinha princesa, linda e muito fragilzinha e um príncipe encantado, que ia aparecer no final, enfrentar o dragão  e salvar a princesa, colocando o mundo nos eixos, como acontece nos reinos distantes.  

Porque o bem sempre ganha e derrota o mal. E todos vivem felizes para sempre. 

Era uma vez...

E  ali, entre travesseiros e cobertores, estava montada a fantasia que embalava as nossas vidinhas sem-graça, de crianças pobres da periferia da cidade, sem muito acesso ao sonho.

O tempo, se não me engano, passava mais devagar. A gente acordava bem cedo,  a  tarde passava devagarinho, o dia rendia. A gente brincava sem brinquedos, na rua de terra, com a molecada. Subia nas árvores, amarrava balanço. A noite  demorava a chegar.

Mas,  quando enfim a noite chegava, a gente rodeava a tia, pedindo uma história.   Era quase sempre a mesma: era o bem contra o mal, era o reino muito distante, mas era um prazer imaginar cada  cena, vibrar com o suspense, e esperar o desfecho conhecido.

E foram felizes para sempre!

A tia hoje é uma velhinha meio surda e meio caduca, coitada.  Se duvidar, ela é quem gostaria que lhe contassem contos de fada.

domingo, 5 de abril de 2015

CAUSO DE ASSOMBRAÇÃO





     Dedicado à Fernanda Ozilak, ilustradora e filha, a quem assombrei na infância com os meus causos ligeiros...



Éramos bem pequenas, as três. 

O meu avô,  um velho muito alto e que usava chapéu, tinha o gostoso costume de esquentar fogo na taipa do fogão toda noite, antes de dormir. Naquele tempo fazia muito mais frio. Nós, suas netas queridas, penduradas ao seu redor, pedíamos queijo quente na chapa, ou pipoca, ou bolinho de chuva e que ele contasse um causo de assombração.

Puro masoquismo, uma vez que,  depois de escutar os tais  causos, tínhamos medo até de andar até o quarto. Íamos agarradinhas uma na outra, e dormíamos com a cabeça coberta. Naquele tempo ainda não havia televisão, então essa era a nossa diversão noturna. Martírio e delícia...

Um dos causos de que eu lembro era o da loira fantasma e o vaqueiro valentão.   

 Era assim: havia um vaqueiro que era metido a valentão e que gostava de ficar contando vantagem na venda da beira da estrada, entre todos os seus colegas vaqueiros que sempre paravam ali para tomar uma pinguinha antes de seguir viagem. Numa dessas ocasiões, alguém contou que alguém tinha lhe contado sobre uma certa mulher loira, muito bonita, que tinha morrido sem cumprir uma promessa de ir a Aparecida do Norte, e que desde então a falecida aparecia para os viajantes no meio do caminho escuro, chorando e pedindo carona. 

O vaqueiro valentão não deixou barato e arrotou que se a tal da loira surgisse, não hesitaria em dar  a ela um lugarzinho na garupa do cavalo. 

Dito isso, montou e partiu, seguindo o caminho  longo e solitário rumo do sertão. Era noite de lua cheia, e a lua alumiava as cercas e as grandes palmeiras à beira da estrada, formando sombras magras e compridas no chão de terra.

Avistou a porteira grande duma fazenda e de longe divisou o vulto de uma  pessoa sentada.  Era uma mulher loira, vestida de branco. De longe parecia bonita. Conforme ele foi chegando mais perto, percebeu que ela chorava soluçado. 

- Que que é isso, dona, por que essa tristeza toda?  Ela respondeu que ia indo para o norte, mas que já estava cansada.  Que era tão longe, que nunca chegava... O valentão, esquecido do assunto da venda, ofereceu a garupa. A dona não carecia chorar daquele tanto.

Cavalgaram calados debaixo do  luar por bastante tempo,  até que ele percebeu que a mulher não esquentava, e o corpo dela grudado, às suas costas, continuava frio que nem uma pedra. Nesse ponto ele olhou para trás e...

O vovô então fazia uma pausa teatral para acender o pito de palha num tição de lenha, enquanto nos achegávamos mais ainda umas às outras. 

- Conta, vô!

Nesse ponto - ele prosseguia com voz soturna -  o vaqueiro olhou para trás e nem queiram saber o que é que ele viu! 

 - O foi que ele viu, vô?

 Era o bicho mais feio do mundo, uma  assombração, um corpo-seco, uma alma-penada. A loira riu uma risada muito alta e muito feia,   tarracada  na cacunda do vaqueiro,  e só então o valentão lembrou que levava um patuazinho preso ao trancelim no pescoço, com a imagem da Virgem. 

- Valei-me, minha Nossa Senhora! 

 Nessa hora, concluia o vovô, o bichão feio pulou fora da garupa do cavalo, e soverteu numa nuvem de fumaça.  

 Só ficou aquele cheiro de enxofre no ar...

Nossa procissãozinha apavorada seguia então para o quarto e dormia agarradinha uma na outra,  na grande cama de casal. De cabeça coberta, é claro.

foto: A Sombra - Feozzy

quarta-feira, 1 de maio de 2013

LEMBRANÇAS



Eu invejo as pessoas que têm fartas lembranças da própria infância. Falam dela com riqueza de detalhes, falam sobre coisas grandes e pequenas, pessoas e lugares  que já nem existem mais.

Eu não. Com muito custo lembro das duas coisas mais remotas da minha vida. E ainda às vezes até duvido delas, pois podem nem ser uma lembrança minha,  pode ser que alguém tenha me contado. Fiapos!

Os bois... 

A minha primeira memória são bois envoltos na poeira da rua. 
Eu teria então uns quatro de idade, e estava sentada no primeiro degrau de uma escada muito alta (tudo era então tão grande) na frente da nossa casa, lá em Minas. 
Ao meu lado, a minha avó, de roupa preta e lenço preto na cabeça,  me dando cana em pequenos toletes muito doces.
Foi então que apareceu o primeiro boi, de uma grande boiada conduzida por homens de chapéu largo na cabeça.
Era um boi medonho.  Ele tinha uma cara grande marrom da cor da terra da estrada, e o focinho úmido bufando: eu vi o olho do boi me olhando.
Foi coisa de minuto, minha avó me puxou escada acima e ficamos lá olhando aquela multidão de lombos suados passando, passando, interminável, enquanto a poeira da estrada subia e se alastrava.

As rosas...

Então eu já tinha uns cinco para seis anos, e já era no porão que alugávamos em São Paulo, na Rua Domingos de Morais. Tinha um jardim de  roseiras velhas muito altas, de tronco grosso e espinhento,  na porta da cozinha.  
O sol, batendo nelas contra o muro branco, formava desenhos de sombras dançantes.  Sentada num degrau,  eu cheirava o ar perfumado de rosas e de feijão cozinhando, enquanto sondava as formigas cortadeiras andando em fila indiana e carregando pedacinhos de folhas. E escutava as abelhas zumbindo em volta das rosas.  

O mundo mais recente  parece que também já está sendo envolto numa espécie de torvelinho, uma névoa, prestes a desaparecer.  Parece que eu tenho que lutar de alguma forma - talvez escrevendo? - porque mesmo essas cenas de agora também  podem a qualquer momento se apagar. Deletando  o que eu fui, e o que eu sou.

sábado, 8 de setembro de 2012

OS EMPREGOS






Era o ano de 1969, uma pobreza abençoada. 

Eu vivia na margem da margem, sem ser marginal.  Mais um passinho e  seria uma sem-teto, mas acho que naquele tempo nem existia o conceito. 

Precisava trabalhar, já estava me preparando: cursava o Ginásio Industrial da Associação Cívica Feminina, hoje Colégio Olga Ferraz, no bairro da Água Branca, e à noite fazia o curso de "Dactilografia". asdfg asdfg asdfg asdfg,  lembra?

Era tudo muito simples.

Para se arranjar qualquer empreguinho,  digamos,  de auxiliar de escritório, tinha que ter "boa aparência", seja lá o que isso queira dizer, ginásio completo, e datilografia. 

Ter os documentos em dia, também:  diploma, RG, Título de Eleitor e Carteira Profissional,  Carteira de Reservista para os meninos. Ah, e duas fotos 3 x 4 se você fosse contratado. Chapa do Pulmão também, esse bando de tuberculosos enrustidos que nós sempre fomos...

Ainda não tinha internet. Recortava-se o anúncio da vaga de emprego nos classificados do jornal, perguntava para o fiscal no ponto de ônibus como é que se fazia para chegar na rua da empresa tal, e ia para a fila de candidatos, fazer o teste e, se aprovado,  a entrevista.

Meu primeiro emprego foi  na Rua Direita, no centrão de Sampa, mas não passei na experiência, e assim fui dispensada no primeiro mês. Foi um mês de muita privação, pois eu  só tinha dinheiro para comer um hotdog e beber um suco da maquininha.  Não existiam o vale-refeição e nem o vale-transporte,  mas eu tinha o passe escolar, a cartelona mensal comprada  num posto do Ministério da Educação e Cultura, na Galeria Prestes Maia, embaixo do Viaduto do Chá.

O segundo emprego já foi bem melhor. Graças à ajuda de um político, fui trabalhar numa editora no bairro da Luz, no setor de arquivos. O bom homem havia me arrumado dois empregos, para eu escolher. Escolhi o que tinha refeitório, porque não queria nem lembrar do cachorro-quente. A cozinheira da firma nos dava café da manhã, almoço e ainda guardava um pratinho de janta pra quem ia direto do trabalho pra escola. Coisa de mãe.

O terceiro emprego foi a glória! Fui ser telefonista no  setor de informações da CTB - Companhia Telefônica Brasileira, na Rua Sete de Abril.  Excelente refeitório! Salário melhorzinho, pude continuar meus estudos, pagar o cursinho pré-vestibular no Etapa, entrar na Universidade de São Paulo. Cujo bandejão sempre me sustentou.

Hoje eu olho para trás com ternura,  dou muito valor a todas aquelas experiências, e gosto de tudo que fiz. Eu não faria nada diferente, se pudesse voltar no tempo. Nada! 

E você?

foto: máquina de escrever - web