Sou uma pessoa prática.
Acredito piamente na livre iniciativa, mas penso também que tudo aquilo que fazemos é só no intuito de obter prazer, aprovação, elogios, reconhecimento público ou privado, na nossa intrincada vida em sociedade. Não consigo conceber a virtude isolada, a ação sem reação, o automatismo absoluto do caráter. Quando estudo, estou querendo uma nota boa na prova. Quando trabalho até mais tarde, estou de olho num aumento de salário ou numa promoção. Quando faço carinho em alguém, logicamente espero que esse alguém me retribua, seja em gênero, número ou grau. Ou não é assim?
Não. Pelo menos não é assim para a Dóris, a minha linda, loira, malucona e feliz amiga Dóris.
Conhecemo-nos já faz bem uns quarenta anos, se não mais. Trabalhamos juntas no call center duma grande multinacional, num daqueles prédios de oitocentos andares, no centro da cidade.
Eram os anos 60, éramos novinhas, bonitinhas, magrinhas, alegrinhas, inteligentinhas, cheias de sonhos e ideais, cheias de amor para dar. E como dávamos!
Não vou aqui entregar a colega, falo por mim: eu pelo menos fazia exatamente o que me dava na telha, afinal era o Women's lib, o make love not war, etc e tal. Ser livre significava, então, imitar tudo que os meios de comunicação (leia-se os Estados Unidos) mandassem: vestir-se de hippie, fumar e beber e usar de um tudo, e trocar de parceiro quando sentisse vontade. (Paz e amor!)
Sobre a Dóris, só posso dizer que ela também era uma menina avançadinha, que vestia, fumava, bebia, usava e fazia tudo aquilo que acabo de citar. Eram os anos 60... Mas tudo passa, eu sei bem.
O tempo passa, a moda passa, e vêm as inevitáveis mudanças físicas, acompanhadas das mudanças ideológicas. Nem ficava bem a gente aí zanzando pelas ruas, cheia de ruguinhas e cabelos brancos, tentando prolongar uma juventude e uma liberdade que já lá se foram. No mínimo ridículo, por anacrônico. Afinal eu estudei, me formei, tenho um cargo invejável numa multinacional, namorei e casei, sou uma dita cidadã respeitável, tenho filhos adolescentes. Não ficava bem.
Mas a Dóris não pensou assim.
Alguém me disse que a viu, na Paulista, ali perto do Trianon, sentada sobre um panão preto estendido na calçada, vendendo badulaques. Pulseiras, colares, essas coisas.
Curiosa, peguei o primeiro vôo com destino a São Paulo, emboquei na muvuca do metrô e saí à procura de Dóris. Você já perdeu alguém em São Paulo? Anda, vira, mexe, procura daqui, interroga de lá, acabei numa feirinha de antiguidades que tem em Pinheiros, na Praça Benedito Calixto. Famosa.
Curiosa, peguei o primeiro vôo com destino a São Paulo, emboquei na muvuca do metrô e saí à procura de Dóris. Você já perdeu alguém em São Paulo? Anda, vira, mexe, procura daqui, interroga de lá, acabei numa feirinha de antiguidades que tem em Pinheiros, na Praça Benedito Calixto. Famosa.
E não é que achei a Dóris! Lindona, do alto dos seus "58 anos muitissimamente bem vividos", de oclão a la Janis Joplin, cabelão loiro solto nas costas, maravilhosa, e ainda devidamente trajada de hiponga, vendendo artesanato. Minha amiga Dóris.
Abraçamo-nos num longo abraço apertado, ali no meio do povo, que passava prá lá e prá cá sem adivinhar que quarenta anos de inevitáveis diferenciações, de perdas e encontros, de fugas e descaminhos pelos igarapés e igapós da vida, estavam se apagando ali mesmo.
Aquelas duas coroas ali viajavam (a seco) no tempo, para um passado mágico e distante, onde se usavam flores no cabelo e muito amor no coração.
Aquelas duas coroas ali viajavam (a seco) no tempo, para um passado mágico e distante, onde se usavam flores no cabelo e muito amor no coração.
13 comentários:
Cara Dalva,
estou gostando...
espero o desenlace.
abs
Dalva, pensei no primeiro parágrafo que você iria demolir as minhas supérfluas, mas insistentes preocupações sobre a relação entre indivíduo e sociedade, na esperança que haja alguma autonomia contra as convenções. Somos só essa dependência? Esse desejo de aprovação?
Foi quando surgiu a Dóris! Que alívio! Mas há tantas Dóris e suas dores por aí. Mesmo que náufragas em ilhas desertas. Fico feliz se me deparo com elas,e me inquieto. Por que será? Dóris avante! Mesmo com esperanças e ilusões desusadas.
Abraço.
Quem viveu essa época sabe o que foi e dá uma saudades...tanta que vejo que até os jovens de hoje tem saudades daquele tempo. Um conto lindo e por aqui Pinheiros, Vila Madalena, Pompeia...ainda tem muitas Doris.
beijos
Que delícia ir de encontro ao querer bem que nos remete ao bem querer da vida.
Cadinho RoCo
Ai! Deu até um nó na garganta.
Um texto que inicia brilhantemente racional e descamba para a emoção pura.
Adjetivos para elogiar são insuficientes. ADOREI.
Um abraço!
Passando pra dar um 'alô'.......... e retribuir as visitas....
Bom domingo !
=]
Como é bom reencontrar um amigo do passado e reviver em companhia uma época boa, não?
Bjs!
Tudo é tão real, só uma grande escritora o pode transmitir.
Bjs
onny disse...
Dalvíssima, que crônica emocionante, adorei! Já tinha call center nos anos 60? Nossa, pois só me dei conta mesmo de que telefone existia no começo dos anos 90, quando eu e a Tan compramos uma linha por uma fortuna e pouco tempo depois a Telesp virou Telefonica, e a nossa linha passou, assim, a ser a linha deles.
Beijos!
Adorei esta história! Remeteu-me um tanto quanto aos meus tempos juvenis, muitas amizades saudosas, algumas das quais ainda perduram. Prazer conhecer o seu blog. Convido-a a seguir, comentar o meu, que é de poesias e foi presente de uma amiga muito cara no Dia do Amigo (www.simonemouramendes.blogspot.com)
Boa Dalva!
Um grande prazer entrar aki, e ver uma História, não estória!! Pois Doris soa como uma personagem do passado, mas que ainda presente.
Mas sua narrativa, plena e, vitoriosa, pois sem esforços maiores, se lançou a procura de alguém que vc tanto amou e, que fez parte de uma passado gostoso de se lembrar.
Anos dourados, 60 e 70, bem como o síbolo acima postado, de Paz e Amor, fruto das atrocidades das guerras infundadas da época...
Vinda também de atos de manifestações culturais, misturadas cOM revoltas, de um turbilhão de coisas marcantes em quase todo o munda da época.
Mas reSsalto, que seu relato, além de emocionante, demonstra ainda, que o Amor cultivado com siceridade, nos leva a fazer o que você fêz, ir de encontro a uma amiga tão querida.
Que bom que teve um final lindo e tão emocionante, como o foi!
Amei, e já estou te seguindo Dalva.
Uma linda tarde pra ti, cheia de muita paz e Amor em seu coração..
Bjs
MARCIO RJ
Querer viver é fundamental, paz.
Beijo Lisette
Ai eu queria ter nascido umas decadas antes, umas 2 ou 3 pelo menos! :) estou seguindo!
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