quarta-feira, 11 de março de 2009

O AMOR DE LUCICLEIDE





















Atire a primeira pedra aquele que não sofreu por causa de um grande amor.

Quem nunca ficou feito besta, escrevendo o nome amado numa folha de caderno, mil vezes; Fulano, Fulano, Fulano. Mil vezes! Ou quem nunca sentiu aquele friozinho na barriga, aquela tontura, aquela falta de ar, aquele prenúncio de morte, quando via a pessoa amada ou até mesmo quando pensava nela. Quem não idolatrou uma fotografia 3 x 4, ou guardou uma rosa seca, um lacinho de fita, um papelzinho de bala só porque ganhou do ser amado. E por aí vai.

Amar é assim mesmo, é ao mesmo tempo um mar de realidades e um oceano de fantasias. A gente mais idealiza o parceiro do que repara nas suas inevitáveis imperfeições, até que seja tarde demais.

O namoro e o noivado (ainda existe noivado?) existem para isso mesmo: para que os nubentes se conheçam melhor, para que convivam um pouco mais e comparem os gênios e as idiossincrasias, e para que decidam se vale a pena viver o resto de suas vidas juntos, até que a morte os separe. 

Pelo menos devia ser assim.

No caso da Lucicleide, a filha do verdureiro, não foi bem o que aconteceu, bem pelo contrário! Lucicleide era uma nefelibata, a cabecinha sempre nas nuvens, sempre idealizando o seu príncipe encantado e o momento em que ele chegaria, num fogoso corcel, para libertá-la da mesmice dos seus dias, no balcão da quitanda, e suas noites idiotas, plantada diante da TV. 

Aí apareceu o Osvaldinho. Ah! o Osvaldinho...

O Osvaldinho era um daqueles conquistadorezinhos baratos, do cabelo cheirando a brilhantina, do sapato de bico fino, cheio de piropos e de plurais. Que lindos olhos que tu tens, minha princesa! Meus dias ficam mais alegres quando os vejo, minha deusa! Teus cabelos são mais negros do que a noite sem luar, minha graúna... Coisas assim, mas que fizeram a Lucicleide se apaixonar perdidamente pelo tal, a ponto de transformá-lo num verdadeiro deus.

Ai de quem ousasse questionar qualquer detalhe sobre a vida pregressa, presente ou futura do Osvaldinho! Que ele não trabalhava? Ora... Que ele sumia de vez em quando, não deixando nem o rastro? Afinal ele voltava, não voltava?


Osvaldo, Vadico, Vavá... mil vezes ela ia escrevendo o caro nome e os apelidos adorados no papel pardo de embrulho, o qual ia envolvendo e distribuindo dúzias de bananas e maços de couve pelo bairro inteiro, enquanto noticiavam que Lucicleide amava Osvaldo. Mil vezes!


Namoraram, noivaram e casaram, no prazo de um ano. Tempo demais, para alguns; muito pouco tempo, para outros, que sacaram logo de cara que o moço não era lá grande coisa. Um pilantra, isso sim.


Ganharam os segundos: o casamento com Osvaldo (
Vadinho, Vadico, Vado, Vavá), que deveria ser um mar de rosas, provou ser um belo atoleiro.

Acontece que Osvaldo era mesmo enrolado com a Justiça. Era também, além de um tremendo 171, viciadíssimo na jogatina. O marido desnaturado, quando não sumia do mapa, passava noites e mais noites enfiado no jogo, enquanto Lucicleide definhava, sozinha, defronte à TV. 


Igualzinho a antes, mas doía mais.

foto: Edward Hopper

7 comentários:

Anônimo disse...

Que amorzinho mais bandido que a Lucicleide foi arrumar. No caso dela, arrumou um bandido de verdade, literalmente. Se o Osvaldo era bandido, Lucicleide também não deixava de ser uma bandida, já que a cumplicidade divide o ato criminoso, 50% pra cada um. Infelizmente, tem muita mulher que gosta disso, dessa áura de macho com muito poder e virilidade, mas que geralmente não traz aquela proteção tão desejada, pelo contrário, a vida vira um inferno e dos familiares e amigos da cabeçuda idem.

Beijos

Dona Sra. Urtigão disse...

Adoro seus contos. Que contos, contam da natureza humana como é, demasiado humana.

Concha disse...

Porque é que a paixão é cega?

CarolBorne disse...

Ô, Lucicleide... tadinha! Cara, esses Osvaldinhos certamente são coisa das PQMCE...siesque.

angela disse...

Sabe que conheço uma estoria parecida, que se passou ai por 1950. Tudo igual, so que "Lucicleide" ficou doente, teve tuberculose, o que naquela é poca era um mal grave de dificil cura. O "Vadinho" parou de jogar, de beber, de passar noites fora e ficou cuidando dela para que não fosse internada naqueles sanatorios. Ela curou-se e eles viveram juntos até que "vadinho" morreu. Viveram como vivem a maioria dos casais, porém nada de jogo e noites fora de casa.
AS vezes penso que nos as "Lucideides" (mulheres quase sempre são) enxergamos o que ninguem mais ve, nem o proprio, que por não enxergar pode passar o resto da vida sem desabrochar.....quem falou que é só mulher e flor que desabrocham?
São muito redondos seus contos, não há como não ver a vida neles e desculpe o comentário longo.

Lari Bohnenberger disse...

É... São tantas Lucicleides por aí, que se casam com o príncipe Que elas mesmas inventam, e depois se obrigam a passar a vida ao lado de um sapo gordo...
Bjs!

O Profeta disse...

A palavra é semente
Que floresce na luz de cada alma e enternece
Às vezes é doce veneno
Às vezes taça de cidra que o peito aquece

Ser Poeta é tanto, tão pouco
É transformar em crentes os ateus
É domar todas as tempestades da alma
É estar mais perto de Deus


Mágico beijo