segunda-feira, 18 de outubro de 2010

FANTASMA DE MIM


Você tá tão magro...

Desse jeito maldoso, enfiando o dedinho na minha fraqueza, ela achou de colocar um fim em dez anos, três meses e dezenove dias de ausência. 

Como se nos tivéssemos visto recentemente num shopping qualquer, ou numa praia qualquer no verão passado, algo assim.

Não considerou, aliás não sabia e nunca vai querer saber disso, o que eu rodei por esse mundo feito um cachorro sem dono, comendo o pão que o capeta amassou com o rabo só prá tentar sobreviver. Um dia de cada vez, só por hoje, só por hoje. Na miséria. Sem casa, sem carro, sem emprego, sem amigos, sem família, sem razão. A bebida, a droga...

Um fantasma, é o que eu acabei virando, uma porcaria de um fantasma.


Ela ficou com tudo: a guarda da filha, o apartamento, o carro, a aprovação tácita e reconfortante da sociedade circunvizinha. Coitadinha dela... coitadinha dela. Ela foi a vítima, eu fui o vilão.


Porque afinal era eu que bebia, eu que me drogava, era eu que aprontava. Enfim: fui eu que saí de casa, e me perdi de vez. OK.


O Sistema. OK. 


Finalmente, considerado uma ex-pessoa, morei aqui e ali, debaixo dum viaduto, duma ponte, num vão qualquer. Peguei doença, peguei micose, perdi dentes. Um fantasma, um ordinário dum fantasma.

Apesar de ter sofrido - a vida me serviu dores em dose farta - de ter perambulado sozinho pelos cantos obscuros da cidade à busca de um nicho provisório que me abrigasse, de ter que desinventar o sofrimento com alguma panacéia para a tristeza de não ser mais gente, de não poder nem sequer ver a filha quando a noite vinha chegando, de certa forma fui feliz pelo  avesso, sofrendo.


Porque sofrendo eu senti que purguei bem paga a culpa, senti que expurguei a vergonha dos fracassos sucessivos, até que, no fim das contas, me senti leve outra vez. 


Virado em fantasma, eu tinha pago com juros o ter sido um verme: por ter feito merda.

Mas não foi nada fácil encontrar com ela daquele jeito, no meio da rua, de surpresa, depois de tanto tempo. Magro sim, fedido sim e sem dentes, um fantasma de mim. 'Fiz luzes', ela disse. 


Dez anos, três meses e dezenove dias de ausência, e ela tinha feito luzes.


foto: Béatrix Reynal