sábado, 3 de maio de 2008

A CHUVA


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A chuva era um hiato na vida da gente. A vida normal era o antes e o depois dela: no durante, era o tédio.

Antes da chuva, tinha aquela correria para recolher a roupa que o vento balançava enlouquecida no varal e fechar as janelas que batiam.

Guardar o feijão que secava espalhado no terreiro antes que molhasse. 

Chamar as crianças para dentro, cobrir o espelho com pano e tirar o fio do rádio da tomada, por causa dos raios.

Os trovões cresciam ao longe, medonhos, e iam chegando cada vez mais e mais perto.
Relâmpagos cortavam o céu cinzento, mostrando o avesso da copa das árvores. 

Medo.

Caía por fim a chuva braba,  pingos grossos batendo nas folhas dos pés de mamão. Rosários surgiam numa ladainha medrosa que ia subindo e descendo de tom conforme o ribombar da trovoada. Nos cantos, queimava-se palha benta e creio  que ninguém permanecia inteiramente ateu durante uma tempestade. 

As crianças ficavam encolhidinhas dentro de casa, empoleiradas em roda do fogão de lenha, observando as goteiras goteirando nas latas, panelas e bacias espalhadas pela casa. 


Pingo, pingo, pingo... 

Lá fora, a ventania em redemoinhos uivava e levantava as telhas velhas do galinheiro, espantando as galinhas do choco e arrastando a palha do paiol de embolada com algum balaio vazio. 


A criação, sofrendo incomodada, campeava por uma beira de telhado e ficava ali entafuiada, excomungando a tormenta com olhinhos desconfiados.
 


Quando os passarinhos enfim voltavam a cantar, vinha a surpresa gostosa do depois-da-chuva: o arco-íris no céu, começando lá adiante, onde o capinzal jazia tombado pela enxurrada, na beira do ribeirão.


O mundo ficava feito novo.

A GENTE SAI DO SERTÃO...


"A gente sai do sertão, mas o sertão não sai da gente"

(dito por um grande amigo)



O sertão, com tudo que ele tem de tristonho, de aviltante, constrangedor, neurotizante, fica grudado na sola da nossa alma, para sempre, eu acho não há prozac nem divã que arranque.

Fica a lembrança vergonhosa daquele sapatinho de escola velho e apertado, aleijando o dedão, ou daquela roupinha desbotada de segunda-mão.  Remendos no cotovelo, no joelho, herança do irmão mais velho, da patroa, do parente rico. 

O defunto era maior. Pé de pobre não tem tamanho...

Aquele parente rico e nojento, que morava nos quintos-dos-infernos, mas que vinha de lá, todo santo ano - o filho da mãe -  só para arruinar ainda mais o nosso já tão mixo Natal com a sua presença inoportuna. Com a descarada exibição daquela fartura toda, para nós simplesmente inatingível. Restos da ceia e brinquedos quebrados: ainda serve.

A eterna adaptação de tamanhos, formatos e utilidades, a invenção obrigatória da reciclagem quando o mundo nem sonhava com essa palavra. O serzido, a marrafa, a prega, o remendinho humilhante. A garrafinha com rolha, a latinha ariada, a caixa velha, o papel de embrulho amarfanhado, reutilizado mil vezes. "Tudo se aproveita, nada se joga fora".


Nem as mágoas, nem a inveja, nem o despeito.


A gente sai do sertão, tudo bem. Porque  trabalha de dia, estuda à noite, dorme pouco, come da marmita perigando azedar. Economiza, guarda, poupa, investe. 


Sobe na vida, a duras penas, fatalmente.


A gente pensa que supera a dor daquela hora íntima, da vergonha da constatação da própria miséria.

Ao assumir um posto mais elevado na vida, longe do buraco, a gente vê  com vergonha que não tem a roupa adequada, não tem um calçado decente, não tem as malas apropriadas. Compra tudo a prazo, escora bem a cara e vai em frente, que atrás vem gente.

Na verdade, o que a gente não tem é a história pessoal apropriada, porque viveu sempre uma vida de gambiarras, tentando burlar a seleção natural, aquele sertão que teima em ficar grudado na sola do sapato da gente.