sexta-feira, 31 de agosto de 2007

REBELIÃO






Ali pelas dez e meia, onze da noite, Antenor, o carcereiro, entrou correndo, com os olhos esbugalhados, e gritou, com a vozinha fanha:

- 'aramba! Os 'aras 'ão 'ebrando tudo! É 'ebelião !!!

Os presos (eram quase trezentos num espaço destinado a menos de cem) tinham arrancado as grades das celas e as outras que separam os cárceres do pátio interno. Estava tudo arrombado, tudo aberto. Haviam amontoado as grades arrancadas, bloqueando com elas a porta de entrada da carceragem: ninguém saía, mas também ninguém entrava.

A fumaça preta dos colchões incendiados empesteava o ar, com um cheiro esquisito de galinha sapecada e creolina.


Eles tinham arrombado a cela-forte (nem tão forte), onde ficam separados aqueles presos problemáticos, os jurados de morte e os estupradores, arrastando-os para o meio do pátio, onde foram surrados sem dó e depois largados lá, meio mortos, amontoados sobre as grades arrancadas das paredes. Então os malucos botaram fogo nos colchões, debaixo dos ferros:

- Nós vai fazê churrasco de estrupadô!


Os bombeiros, enfiando a mangueira na muralha, por cima das celas, apagaram a fogueira, evitando o churrasco macabro.  Felizmente o destacamento era perto...

A lenga-lenga durou a noite toda, adentrou a manhã e a tarde. Uma zorra, um inferno. Os amotinados exigiam melhores condições, pediam pelo comparecimento do juiz corregedor, clamavam pela imprensa. 

Vieram reforços.

Foi providenciado o atendimento médico dos espancados e dos chamuscados, e a remoção de vários presos para outras unidades,  e então o cansaço bateu. Os plantonistas, arriados nos bancos da sala de espera, meditavam sobre o domingo estragado.

- Você não bateu a grade, Antenor? Não viu nada?

- 'ati sim, uai! Os 'aras são a imagem do 'ão!

- Do cão ou não, Antenor, você vai ver o tamanho do bonde, depois dessa mancada. Eu não sei não, mas parece que já estão providenciando tua permuta com um carcereiro lá de Xiririca da Serra. Não sei não...

- 'aramba! 'ala sério! 'inguém 'erece!

É... ninguém merece.

2005

GRUPO ESCOLAR













Minha primeira escola era uma casinha pequena, de duas classes apenas, na periferia da cidade.
No primeiro dia de aula, minha mãe levou-me pela mão, e eu pedi que ficasse esperando do lado de fora da classe, porque tinha medo.
Mamãe, a mulher doce que o destino colocou na minha vida para fazer que o meu caminho fosse mais suave, disse que ficava, mas foi para casa fazer seu serviço - ela costurava para uma fábrica de bolsas - para depois me buscar.
A professora chamava-se Dona Isaura. Lembro que ela me perguntou o meu nome, depois o escreveu na lousa. Ah! a indescritível magia de ver o meu nome assim transformado numa coisa tão importante, lá em cima da lousa, no meio dos outros nomes daqueles meninos e meninas desconhecidos! Era a fama...
Depois da aula, saí da classe feliz da vida, ganhando um beijo da Dona Isaura e levando nas mãos a lista de materiais:

1 cartilha "Caminho Suave"
1 Taboada
1 caderno de linguagem 100 fls.
1 caderno de caligrafia 100 fls.
1 caderno de desenho 100 fls.
1 régua 30 cm
1 lápis preto n° 1
1 borracha
1 caixa de lápis de cor

Esse foi o meu começo, e ali se definiram muitas coisas na minha vida: a extrema simplicidade, o amor à palavra escrita. O resto é mera circunstância.

2005

NO METRÔ


Assim como a enxurrada passa depois da chuva, carregando consigo folhas secas, gravetos e formigas dos barrancos, o trem noturno desliza potente nos trilhos de aço, levando as pessoas no seu fluxo quase silencioso. 

É a última viagem da noite.

Os derradeiros passageiros entram nos vagões quase vazios e vão se espalhando sonolentos, sentando-se perto das janelas por puro costume,  já que todas  mostram o mesmo paredão cinzento e monótono dos subterrâneos da cidade.

As pessoas economizam expressões,  parece que plastificaram as caras. Ninguém é triste, ninguém é feliz naquele universo que se arrasta noite adentro. 

Fechados em seus casulos, evitam  o contato forçado da promiscuidade da massa. Quase todos têm fones de ouvido. Ninguém fala,  ninguém ouve,  ninguém vê.

A cada parada, homens e mulheres  executam um um bailado insólito de movimentos avaros, caminhando até os bancos de plástico ou até a porta eletrônica. Esquivando-se  ao toque, driblando o contato visual.  
 

Se acaso um olhar vago encontra outro vago olhar, ocorre como que uma descarga elétrica, e os olhos fogem e resvalam  para um ponto fixo no  sub-mundo de ferro e cimento.

O silêncio é  quase religioso. Só se escuta o zumbido enfezado da máquina e o  chacoalhar de caveira das rodas nos trilhos.

Na estação semi-deserta ainda sobem mais umas poucas almas. O trem segue.

foto: "Body Piercing" - Fun Advice


2005

NÚMEROS CIGANOS


"Voar é fácil
Difícil é saber
que o ar que eleva
é o mesmo que segura." - Prozaico 20mg











Na tarde comprida, o barulhinho monótono da máquina de costura hipnotizava o tempo: chocotó, chocotó, chocotó ...
As crianças, trepadas na imensa cama de casal, pediam para ela dizer os números na língua dos ciganos.

- Redi, kilene, kilá, teribal, remici, ysiter.

Debaixo dos cachos muito negros, ela sorria maliciosa, mostrando o dente de ouro. Sabia contar em cigano! Seria verdade ou mentira?
Provavelmente era mentira, pois (conforme hoje sabemos) ela torcia, aumentava, diminuía e enfeitava a realidade de acordo com o interesse da pequena platéia.
O porãozinho alugado na velha mansão libanesa da Vila Mariana se transformava num palco perfeito para as nossas vidinhas inquilinas e para os nossos sonhos migrantes. Tudo ali era verdadeiro, principalmente os sonhos.

Então, nas tardes compridas, o seu perfume de alfazema inundava o mundo, enquanto ela contava estórias fabulosas:

- Eu era pequenininha assim, quando uma tropa de  ciganos me roubaram, e me levaram embora. Fui criada entre eles, eles mudaram até o meu nome para que os meus pais não me encontrassem. Minhas roupas eram todas importadas de terras distantes, era tudo de veludo e de seda. Eu também tinha tinha um bauzinho com muitas jóias de ouro, prata e pedras preciosas...

- Foi quando eu aprendi a contar os números em cigano assim, ó: 

Redi, kilene, kilá, teribal, remici, ysiter.  Redi, kilene, kilá, teribal, remici, ysiterRedi, kilene, kilá...

2005

Foto: "La Zingara" - Werner Karin

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

A FAZENDA IMAGINÁRIA















Dos oito filhos, Bruno foi o que ficou junto do pai, ajudando no balcão. Não quis casar.


Acordava cedinho e acendia o fogão de lenha, coava o café, punha o feijão para cozinhar. A sua bulha acabava acordando o papagaio, que matracava no poleiro:

- Louro, dá o pé!
'Cê qué café, louro?


No seu quarto de solteiro, Bruno guardava uma caixinha de madeira trancada, com umas moedas muito antigas, algumas do tempo do Império, que ele nos mostrava de vez em quando, muito orgulhoso. Num canto, o velho violão que ele quase nunca tocava, a não ser quando recebia o seu único amigo, o Zico. Então ele tocava e os dois juntos cantavam umas modinhas antigas falando de abraços apertados, de suspiros dobrados e amores sem fim
.
Quando seu irmão mais velho morreu no desastre, o Bruno não suportou o golpe, enlouqueceu. Durante o velório ele ficou parado num canto da sala, de olhos baixos, com uma tarja preta no ombro. Mudo acompanhou o enterro. Voltou para casa ainda em silêncio, entrou no quarto e ficou sentado na beira da cama de solteiro um tempão, falando sozinho e olhando as moedinhas da caixa.

Desde então o comportamento do Bruno começou a mudar. Parou de ajudar na venda, começou a beber, não se alimentava direito, vagava pelas ruas, amanhecia nas calçadas. Imaginava coisas e de vez em quando escutava um sino misterioso tocando no meio da noite. Então ele acordava a casa inteira para escutar, mas ninguém ouvia nada!
E assim foi indo...

Uma vez ele acordou inquieto no meio da madrugada e começou a arrumar a mala, dizendo que ia fazer uma viagem para regularizar uns documentos da sua fazenda. Mau sinal: se o Bruno não tinha dinheiro nenhum (a não ser aquelas pratinhas velhas da caixa de madeira), ia lá ter fazenda? A família estranhou, mas ele dava detalhes. Falava da casa branca com as muitas janelas pintadas de azul, das mangueiras plantadas, do curral, do gado solto nos pastos e da imensa roça de milho, da plantação de cana e do algodão florindo... afinal onde era essa tal fazenda?

- Mato Grosso!

Viajou e nunca mais voltou,
deixando expressamente para o amigo Zico o papagaio, o violão e a caixinha de moedas.



foto: Marcelle Franco Ferreira

2005