terça-feira, 1 de dezembro de 2009

NO MINHOCÃO


Foi na sexta-feira, entardecia. 

Nas mesas das calçadas dos botequinhos ao redor do teatro, os empregados espichavam já as toalhas, alinhando os porta-guardanapos e os tubos de catchup e mostarda. Espalhavam cinzeiros cintilantes, à espera do movimento que viria. 


Mas era cedo.

Na avenida, rugia o costumeiro barulho, ensurdecedor, enlouquecedor, trans-humano. Os ônibus passando lotados iam sendo secretamente ajudados pelo metrô invisível que, chegando e partindo, ia engolindo pessoas e vomitando-as sem cessar: Estação República! - descia um montão. Estação Santa Cecília! - outro tanto se amontoava feito gado, e saía ou se enfiava dentro da goela multifacetada do bichão de lata, que sumia e brotava dos túneis. 


Era cedo ainda. 


A ópera só começava às oito e meia, e então resolvi futricar por ali por perto, nas lojas. Entrei numa lojinha de móveis usados, uma das tantas que tem debaixo da pavorosa via elevada, conhecida como Minhocão. Atendeu-me a Dona Neusa, funcionária antiga da casa, muito educada, muito solícita. Eu não queria nada não, estava só olhando, avisei. Odeio esses vendedores que te assediam, feito urubu na carniça! Mas a Dona Neusa era diferente, tinha bem mais do que mobília usada para oferecer:

- Fique à vontade, tarde bonita hoje, não?

Realmente. Apesar da fumaça dos ônibus, escurecendo algum fiapo de verde que teimasse em resistir, apesar do tal do Minhocão, encobrindo de concreto cinzento e pichado o nosso horizonte imediato, a verdade é que a tarde estava bonita mesmo. 

Começamos a conversar sobre o clima, o tal do aquecimento global e as mudanças que têm ocorrido na cidade de São Paulo. Mas não era só o clima que mudara.


- As pessoas vivem correndo, ninguém tem tempo para nada.


Ela me contou que era viúva, sem filhos. Que era aposentada, mas continuava a trabalhar na mesma loja de móveis usados. Ficar em casa para quê? - ela pensou alto. Disse que tinha um gato e que cultivava um vaso de gerânios na janela do apartamento, ali perto na Avenida General Olímpio. Os imóveis ali eram bem mais baratos, por causa da feiura do Minhocão.
 

- O barulho e a fumaça são assim mesmo, é dia e noite. De noite é menos, porque o elevado fecha. E de domingo também, fica até vazio demais, sabia? Fica tudo muito solitário, e às vezes eu até sinto falta, sozinha com o meu gato, só nós dois olhando pela janela...


Pensei na ópera que eu ia assistir, logo mais, "La traviata", de Verdi. Composta no meio do século XIX, falava também sobre a solidão de uma mulher, em meio às festas da sociedade parisiense. 


Coincidência.

foto: Fernando Botero

5 comentários:

Anônimo disse...

Há um tempão atrás, quando eu trabalhava no centro da cidade (bancário, sabe como é né?) eu me deliciava com as lojas de móveis antigos que ficavam debaixo do Minhocão. Já cheguei a comprar alguns móveis antigos, mas não nessa região. Eu curtia muito isso, mas hoje em dia eu ando preferindo móveis novos mesmo. Ando sem saco pra devaneios mobiliários. (Kikikiki...) Acho que estou ficando velinho e rabuja!
Dal, eu não sinto falta do Centro e dos arredores dele... Sei lá, acho que porque é como você disse, é adentrar pela solidão, e tudo está tão feio e decadente. Não que Sampa tenha sido um primor de cidade, mas hoje está tão bagaceira que evito de ir lá só pra passear.

Beijos!

angela disse...

Ah! A solidão fica, isso não tem cura, tem é distração.
Lindo conto.

Concha disse...

Não sei conviver com a solidão.
Peço a Deus que não me deixe ficar sózinha,é isto que me dá medo.
Beijo

Lari Bohnenberger disse...

Pra algumas coisas a ciência encontra a cura com o passar do tempo, já outras...

Como dizia Renato Russo, o mal do século é a solidão.

Bjs!

José Carlos Neves Lopes disse...

Olá Dalva, belos crônicas. Você escreve muito bem e de modo agradável. Parabéns.
Abs
José Carlos