terça-feira, 30 de agosto de 2011

UM RAMINHO DE ALECRIM





Fuçando no baú da memória, acabam-se redescobrindo coisas e pessoas que se julgavam sumidas no tempo e no espaço das incontáveis mudanças, tanto geográficas quanto pessoais.

Há gente morta que renasce, garimpada do esquecimento por causa de um objetinho qualquer: um cartão postal, uma fotografia amarelecida, um raminho seco, um laço de fita, uma entrada de cinema...


Por exemplo, aquele meu tio tão querido, que acabou perdendo o juízo por questões meio obscuras, meio adivinhadas como sendo mal de amor. Ele não tinha mais nada além de uma violinha velha e uma caixinha de moedas antigas, do tempo dos reis, que ele guardava ciumento debaixo da cama de solteiro, mas era um ser fundamental na nossa casa e na nossa vida.

O meu tio era um homem moreno e miúdo, do cabelo crespo repartido de banda, sempre de camisa branca e largas calças escuras, Calçava alpargatas, nas minhas lembranças - seu visual estaria na última moda, hoje em dia.


Por pura bondade e certamente por falta de opção, o meu tio tomou para si as tarefas de cozinhar e de cuidar de nós três, as sobrinhas pequenas e órfãs de mãe.

Cuidava com devoção da nossa cozinha. Era mestre em bolinho de chuva e pão de queijo, e alegrava o mundo com o perfume das suas broinhas de fubá.

Com a ajuda do tio, íamos aprendendo a conta-gotas a lidar com os trens de cozinha, e
o aprendizado avançava lentamente, conforme a gente crescia, os detalhes se somando dia após dia.

Cabaça, cuia, gamela, peneira de taquara, panelas de pedra-sabão e de ferro. Ariar o tac
ho com cinza do fogão a lenha e lavar a vela do filtro com açúcar cristal.


Lavar o arroz sem derrubar muitos grãos no ralo da pia, escolher feijão em cima da toalha branca da mesa, socar a pimenta do reino no embrulhinho do canto pano de prato, temperar a carne moída para encher linguiças, pendurar as linguiças recém-recheadas no fumeiro.

Depenar, abrir e cortar o frango direitinho, nas juntas certas. Limpar a moela, tirar a bile do fígado, temperar e cozinhar o frango na panela de ferro.

Fazer doce no tacho de cobre, mexendo sem parar com a grande colher de pau. Doce de leite, doce de abóbora, de amendoim, de cidra. Depois de frio, cortar de quadradinhos, talhando losangos e retângulos no tabuleiro de madeira. Mistérios quentes cheirando a cravo e canela...
Além da cozinha, o tio cuidava da nossa aparência: as três de cabelinho cortado em forma de cuia - mais fácil de desembaraçar - orelhas limpas, unhas aparadas, uniforme completo na hora da escola e o esmero da roupinha colorida do domingo. Dia de missa, missa das sete, comunhão. Dia de ver Deus.

Basta um cheiroso raminho de alecrim para viajar através no tempo até um remoto dia Treze de Maio, em que o meu tio me assistia da platéia enquanto eu declamava um poema de Castro Alves, chamado "A Cruz da Estrada". O poema começava assim:




"Caminheiro que passas pela estrada,

Seguindo pelo rumo do sertão,
Quando vires a cruz abandonada,
Deixa-a em paz dormir na solidão.

Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Que lhe atiras nos braços ao passar?
Vais espantar o bando buliçoso
Das borboletas, que lá vão pousar." ...




Ainda bem que eu tenho memória e que ela tem um raminho de alecrim. Sorte minha que não houve só pedras no caminho - pelo contrário! Tem muita coisa boa para lembrar.


Foto: Alecrim

7 comentários:

Mery disse...

Sorte sua!
Eu também tinha um tio, do qual nunca me esqueço, era bem assim, como o teu e ainda brincava comigo e minhas irmãs,eu sinto tantas saudades dele, que choro quando me lembro, nem pude estar ao seu lado quando faleceu.
QUANTAS LEMBRANÇAS BOAS TENHO DELE!
Estou seguindo você, amei essa postagem, gosto de contar das minhas experiências, do meu dia a dia. Beijos da Mery.

angela disse...

Que lindo, Dalva e ainda bem que na vida tem raminhos de alecrim e borboletas.
beijos

Clarice disse...

Meninas que são criadas com cheiros e sabores serão sempre especiais.
Daqui por diante cada vez que olhar meus raminhos de alecrim(por aqui rosmanim ou rosmarim) vou lembrar de tua história tão bonita. Tantas lembranças me trouxe.
Boa semana.

São disse...

Linda a maneira de escrever uma estória ternurenta.

Boa semana

vidacuriosa disse...

Quando comecei a ler teu belo post, quase não acreditei. É que acabara de responder um e-mail de uma prima e eu falava sobre o pai dela, por quem toda a minha família tinha uma grande admiração. A biografia desse meu tio daria páginas e páginas hilariantes e tristes ao mesmo tempo. Abrs

Silenciosamente ouvindo... disse...

Gostei deste seu post. Para mim os
cheiros são muito importantes.
Desejo esteja bem.Bj./Irene

irene alves disse...

Passei para saber de si e deixar
um beijinho.Vi que não tem inserido.Desejo esteja bem.