terça-feira, 21 de abril de 2009

CENA DE POBREZA












Teve um dia que a comida acabou. Não tinha nada: nem arroz, nem feijão - nada!
 

O pai, meio sonhador, ficou ali na porta da cozinha, pitando um cigarro de palha e olhando para o céu, sem ação. Trabalhar, ele trabalhava, mas cada vez parecia que empobrecia mais. Não era esse o caso, trabalhar. O caso, conforme pensava, era que cada dia trabalhava mais e recebia menos. Fazia hora extra, trabalhava no domingo, no feriado, e muita vez deixava de almoçar, para sobrar mais. A questão... Revoltado, ele deu uma tragada profunda no fumo ruim e tossiu. Tossiu enquanto pensava na vida, o que havia de fazer? 

Roubar? Não... 

Era o aluguel vencido, era a conta da venda - não queriam mais vender fiado - era era isso, era aquilo outro. E agora era a criança doente, para acabar de danar tudo. 

Roubar, não sabia. Não é que fosse tão honesto e nem nada disso, era por medo de ser preso, credo. Precisava dar um jeito. Bateu a ponta do cigarro na unha, ajeitando a brasa, enquanto mastigava uma ideia: ia lá pedir outro vale na fábrica, e pronto. Quem sabe? Não se falava mais nisso. 

Guardou a bituquinha apagada atrás da orelha e falou assim: - Eu vou lá na fábrica. E saiu.


A mulher, que já fazia muito tempo que não sonhava, resmungou baixinho qualquer maldição pesada, que ninguém entendeu direito. Ela ficou ali parada, com o menino no colo e com o olhar perdido num ponto imaginário da parede descascada da cozinha. Prestava uma atenção imensa num cisquinho que subia pairando no ar, na nuvem cheirando a arruda, levada para o alto pelo calor da trempe de lenha.

- Arruda, ela pensou assim, é isso que precisa, esquenta um pouquinho e pronto. E põe no pano e pinga no ouvido e tampa com pano quentinho. Igual a minha mãe fazia. Igual a mãe dela também fazia. Isso, arruda no paninho quente e pronto, sara. E soprava o fogo e chacoalhava a criança com mais força. 

O menino pequeno, com a carinha encostada no pano aquecido ao lume, chorava com dor de ouvido. Os outros, desconsolados de fome, esgravatavam o chão molhado do quintal, judiando dos tatuzinhos, das formigas e das minhocas. Fome, fome, fome...

- Eu vou catar qualquer coisa de comer, disse. Vocês ficam aqui dentro, e ninguém não reina.

Era já bem tarde, aquele dia, quando o pai voltou, murcho, sem o arroz nem o feijão, e muito menos o remédio do menino. O patrão, desgraçado! Disse que não podia dar vale, que já tinha fechado o caixa. - Quem sabe na segunda-feira? ele falou assim. Desgraçado.

A mãe ainda demorou muito mais a chegar, só chegou quando já estava escurecendo, mas vinha com uns restinhos da feira num saco: toquinhos de cenoura e de mandioquinha, umas batatas machucadas de enxada, umas folhas - era comida! Jantaram como ricos, um sopão de legumes bem quentinho, que alimentou o corpo e aqueceu o coração.

Todos ficaram alegres, sentados ao calor das brasas na noite silenciosa que chegou de vez. O pai acendeu a bituca de cigarro e começou a contar uma história daquelas que sempre contava, ou de mula-sem-cabeça ou de pisadeira, ou de alma-penada ou de cangaceiros, quando não era de enforcados.

O pai era bom. Contava história bonita. A mãe era boa. A mãe não contava história bonita que nem o pai, porque a mãe era sempre silenciosa e muito triste. Mas a mãe dava remédio, dava comida!

- Mãe, você é tão boa! E o menino pequeno, curado da dor, virou para o canto e dormiu.


foto: José Itajaú O. Teixeira

7 comentários:

Dona Sra. Urtigão disse...

Excelente retrato de cotidianos.
Ótimo texto.

Jean disse...

Très belle peinture !
Les scènes familiales sont les plus simples , les plus vraies .

angela disse...

o amor pode aparecer em situações tão dificeis. Creio que é uma necessidade humana, como tantas outras.
O texto desperta emoções.

vidacuriosa disse...

Belo texto. Me fez lembrar o livro Os Ratos, do gaúcho Dyonélio Machado, em que Nazazieno perambula pelo centro de Porto Alegre em busca de dinheiro emprestado para pagar o leiteiro e depois não dorme a noite inteira com medo de que os ratos roam as notas que ele deixou em cima da mesa tosca da cozinha. Além disso, esse tipo de drama, num dia desses, de quase fim de mês... sei não... É a ficção debochando da realidade...

Marisa disse...

Que lindo! Adorei.bjs

Concha disse...

É uma realidade escondida, que por cá vem aparecendo,mesmo antes da crise mundial.
Lutar peça desigualdade é uma insatisfação constante.
Adorei ler,é comovente e adorável este realismo.
Beijos

Ramón Minieri disse...

Es un relato hermoso y doloroso. La belleza florece en medio de la privación. Me gusta, Dalva. Ramón.