sábado, 28 de maio de 2011

QUEM CANTA...
















Ainda na infância, quando Clarice devia ter uns dez, onze anos, a coisa foi ficando bem clara: ela só podia ser de outro planeta. Tudo nela, seu gosto, suas habilidades, seus desejos desde os mais simples até os mais profundos, TUDO nela era classificado pela mãe como besteira. Futilidade, inutilidade, não serviria para nada mesmo. Fogo de palha.
O violão, que Clarice ganhara da madrinha no seu 10º aniversário, jazia encostado num canto do quarto, dentro da capa de plástico preto, juntando poeira. A menina até que tentara, burlando a vigilância ideológica da mãe, aprender os primeiros acordes. Que as aulas eram dadas de graça, na Paróquia. Que outras meninas da rua iam, ela não estaria sozinha. Nada adiantou, e o violão foi relegado ao canto, junto de outros tantos projetos frustrados, de outras vocações boicotadas, de tantos outros sonhos sufocados. Desde a boneca de louça com a cara quebrada - consertar para quê, se ia acabar quebrando outra vez? - ou do estojinho de tintas e pincéis que comprara com o próprio dinheiro. Curso de aquarela? Pra que isso, Clarice? Essa menina só inventa moda...
Na adolescência não foi diferente. Nascida em família de poucos recursos, Clarice, no entanto, tinha a (in)felicidade de ter altos sonhos. Sonhou ser música, ser atriz, ser bailarina. Reprovada no sonho infantil do violão, ainda arriscou aprender uns poucos acordes no piano do vizinho rico. Bobagem! Ela foi é imediatamente matriculada na droga de um curso noturno de datilografia, isso sim, alguma coisa útil na vida de uma mocinha. Mais tarde, certamente deveria fazer o curso de estenografia, pois naquele tempo todas as boas secretárias eram exímias datilógrafas e estenógrafas competentes.
E assim foi com os seus sonhos de juventude, assim com a escolha da carreira universitária - uma coisa tão desnecessária - até que Clarice finalmente chegou à idade adulta. Financeiramente bem sucedida, ela já podia desfrutar do luxo de morar sozinha, num apartamento localizado estrategicamente distante da casa dos pais. Liberdade, ainda que tardia.
Clarice finalmente morava sozinha, e podia se dedicar a tudo que quisesse na vida, sem censuras, sem podas.
Primeiro foi o cursinho de dança de salão. Tímida, um pouquinho desengonçada, ela experimentou uma espécie de vertigem quando deu as primeiras voltas no salão, levada com perícia pelos hábeis braços do professor: salsa, merengue, bolero, cha-cha-cha. Quantos ritmos diferentes, quanta sonoridade! Quanta liberdade!
Depois veio o canto, no coral que começara a frequentar todas as quartas-feiras, depois do trabalho. Quem canta seus males espanta. Os males, as tristezas e os muitos fantasmas da infância.


4 comentários:

angela disse...

Que bom que ela não levou a mãe dentro dela!
Até fiquei sem ar com essa mãe.
Bom conto e bem contado como sempre.
beijo

José Doutel Coroado disse...

Cara Dalva,
Gostei!!
abs

Anônimo disse...

Seus males espanta!:-)

Clarice disse...

Nem precisaria dizer que levei um susto quando comecei a ler. Mas a biografia é de outra, apesar de algumas coincidências.
Acredito em sonhos, mas fazer projetos é bem mais certeiro. Eu canto até hoje, se bem que não mais no alto de uma pereira.
Bom final de semana.