
Até aquela noite, ela tinha aguentado tudo: os gritos, as surras, a humilhação. Ela era casada...
Muitas e muitas vezes amanheceu com um olho roxo e botou o cabelo por cima, para esconder o hematoma. Mentiu que caíra encerando o assoalho, uma vez. Que o dente era um pivô mal feito, e que o quebrou comendo pão.
Aguentou tudo firme, sem gritar e nem dar a entender para o povo que era infeliz no casamento, que sofria maus-tratos dentro da sua própria casa. Que era vítima do próprio marido.
Na primeira noite, ao chegar em casa, foi violentada. Conheceu as verdades do sexo na marra, a poder de tabefe. Quieta, bufando no escuro horroroso do quarto. Ela era casada...
Foram anos e anos assim: apanha, serve o homem, apanha de novo, serve e cala a boca. Quanto tempo? Uma eternidade tão triste e tão longa que já nem lembrava mais o que era sorrir.
Mas, naquela noite, sabe-se lá por quê, sentia um negócio esquisito no peito, feito um rosnado de bicho acuado. Naquela noite aconteceu o que não era para acontecer, mas que já era de se esperar.
Naquela noite, mais uma vez ele chegou em casa bêbado, fedendo a bebida e a perfume de bordel, a rosas murchas e pó-de-arroz barato. Jogou em cima da mesa um pacote com carne de porco:
- Faz aí, anda!
Ela ficou um bom tempo olhando o pacote. Pensou na goiabeira da casa da mãe e na própria infância. Pensou que já era tempo de goiaba e que elas deviam estar maduras, de abrir na mão feito caixinhas de jóias. Lembrou da mãe, das irmãs pequenas e da vidinha até bem feliz que ela já tivera, um dia .
Um cheiro gostoso de goiaba começou a inundar a casa inteira, vindo da noite quente lá fora. Ela abriu a porta da frente e começou a andar sem rumo na noite escura, sem olhar para trás. Nunca mais voltou.
foto: "Dog Woman" - Paula Rego
2006
13 comentários:
um texto fictício, mas ao mesmo tempo real demais...
porque isso infelizmente ainda acontece tanto!!!!!!
boa semana.
=*
Que abram-se feito caixas de jóias as goiabas, mesmo que não seja tempo de goiabas. Que a coragem nunca seja sazonal!
É o que desejo, mas ficamos sabendo de tantos casos assim como você conta no seu texto, nos quais é impossível sair pela porta e não olhar para trás, justamente por causa da falta de rumo.
Dá uma revolta na gente.
Beijos,
João Eduardo
Dalva,
Após ter lido um belíssimo texto em http://palomadawn.blogspot.com/2006_09_01_archive.html
fui ao topo do blog deixar um comentário.
E te encontro aqui.
Parabéns!
Se vcoê não encontrar razões para ser livre, invente-as.
Abraços, flores, estrelas... e uma goiabeira carregadinha!
O link saiu errado no anterior.
É isso ai, Dalva, minha querida. Um dia o copo transborda.
Há braços!!
Dal, adorote bem muito. Saudades demais. Eu já apareço, viu? É só preguiça. Pensa que eu não te leio?????
dog woman, que nombre feo, ¿no?...
Dal, vai lá ver http://fromoutspace.blogspot.com/2007/12/selos.html
Te indiquei pra uns premiozinhos!!!
Beijos, Lindona!
Oi, Dalva, que instigante este seu texto. Dá vontade de imprimir e entregar de porta em porta, para cada mulher casada, para cada mulher em si que aceite que outra pessoa, na vida real, a trate desta forma.
Um abraço!
Oi, Dalva!
Dias atrás eu lhe indiquei ao "Oscar"! [:D]
Mas só hoje é que pude lhe avisar do jeito que eu queria.
Confira a sua indicação:
http://www.eletronicjonny.blogspot.com
Beijos e um ótimo fim-de-semana!
Adoro seus textos. Beijos de Feliz Natal!
Tô na praia. Passando rapidamente para agradecer a visita e o sempre gentil comentário, lá no Taxitramas.
Há braços!!
Que surpresa, estou adorando te descobrir assim, através do verbo.
Continuo espiando, volto mais tarde...bjs
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