sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A NUVEM NEGRA



Tudo nessa vida é questão de ponto de vista.

Para o otimista, que vê sempre o lado claro da existência, o copo certamente estará sempre meio cheio, e nunca meio vazio. Os problemas de qualquer ordem ou natureza, sejam eles pequenos, médios ou grandes, serão encarados como desafios ou como oportunidades de crescimento espiritual, intelectual, ou seja lá o que for. No fim tudo dará sempre certo, e o otimista dirá, exultante: "Eu não falei?"
 

Já, para um pessimista inveterado como o Freitas, tudo, mas tudo mesmo no universo existe no único e exclusivo intuito de tornar a vida mais difícil para ele. 

Sob a negra nuvem de fumaça que o acompanha (feito aquelas que se formam quando se queimam pneus) estará sempre tudo dando muito errado, tudo estará ocorrendo muito atrasado, muito adiantado, será tudo muito pequeno, muito grande, enfim, tudo errado. Ele também dirá, mas pelo motivo inverso: "Eu não falei?"

Exagero? Não creio..
 
Era a última semana de dezembro, e a firma tinha dado férias coletivas. O Freitas, que fazia anos não saía de São Paulo, tinha feito  planos para aquela viagem com bastante antecedência. As malas já estavam no porta-malas do carro desde a véspera, tudo nos conformes: máquina fotográfica, óculos escuros, protetor solar, repelente de insetos, boné, chinela havaiana. 

Trajava a tradicional fantasia de turista paulistano: bermudona xadrez, camisa estampada de grandes flores e  tênis de marca. 

Tudo muito bem, até aqui.
Bem demais, pensou. Resolveu dar mais uma checadinha no carro, só para ter certeza. Pneus OK, freios OK, luzes OK, extintor OK. Já tinha verificado tudo isso umas dez vezes, mas sabe como é. Ansiedade...

Foi então que começou a dor. 

No meio do peito, fininha, chatinha, insistente. O Freitas achou aquilo esquisito, aquele embrulho no estômago, aquele aperto na garganta, o suor. Sentou num caixote na garagem, quem sabe a dor passava. Não passou, e começou a ficar cada vez mais forte. Sentia que a dor subia e que amortecia o queixo, migrava até o braço. Não conseguia mais respirar direito. Chamou a mulher, num gemido.

Acode aqui, Neide!

Foram voando para o PS, onde um médico boliviano muito solícito deu o veredito implacável: infarto del miocárdio. Internado às pressas, nem teve tempo de trocar de roupa, destoando muito dos outros pacientes, na insólita fantasia de havaiano.


Quando conseguimos vê-lo, muitas e muitas horas depois, o Freitas só disse, coitadinho, entre os tubos e os cateteres que apontavam de dentro daquela baita nuvem negra: 

Eu não falei?

6 comentários:

Fernanda disse...

Prazer: Fernanda Freitas ao seu dispor!
Você diz que sofre, mas adoro suas prosas.

angela disse...

E não é que ele tinha razão?
Esses Freitas...
Existem tantos.
Uma delicia o conto.

Marcantonio disse...

Sendo uma questão de ponto de vista,otimistas e pessimistas podem igualmente se enganar, mas, como dizia Sêneca, o otimista será surpreendido negativamente. Logo, simpatizo com o Freitas. Talvez entre os dois extremos esteja a esperança, como disse o impagável Mangabeira Unger: aguardemos pelo melhor cientes, entretanto, de que ele pode não ocorrer.

Um abraço esperançoso.

Jean disse...

"Tudo nessa vida é questão de ponto de vista."

oui , c'est une grande vérité que peu de personnes comprennent vraiment ! ! !

Je vous souhaite une belle , grande , magnifique année .

jean

Concha disse...

Gosto do Freitas...
Beijinhos

Anônimo disse...

E os otimistas falarão: "_É bem melhor morrer assim, pluft, rápido e pronto!".

Bjs